Sozinha, luta pela vida, quando se apercebe que para ser feliz tem que viver e não sobreviver.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

3. Primeiro Contacto

Já alguma vez sentiste algo que mesmo que tentasses explicar a outra pessoa não saberias o que dizer? Eu já. Por mais que tentasse explicar era impossível arranjar uma explicação plausível. 

Depois de tanto ponderar sobre a minha sobrevivência decidi tirar três semanas de férias. Durante mais de três anos que não tirava férias, e depois de ter uma conversa muito seria com o meu gerente e amigo, Sr. Lesley decidi tirar um tempo só para mim. 
Estava na altura de caminhar, como diria a Kristen. A Allegra ficou radiante por eu tirar esse tempo e apoiou-me. 
Esse tempo permitiria-me conhecer-me um pouco, e saber que rumo seguir. Aproveitar o que a vida me oferecia. Mas para isso precisava de encontrar o que a vida me oferecia. 
Passei os primeiros dias a passear a cidade, eu já fazia parte desta cidade, mas o quê que eu conhecia dela? Passei o primeiro dia no Central Park, onde estendi uma manta ao sol e li três capítulos de uma livro que acabará de adquirir, mas os pequenos micróbios eléctricos habituados ao movimento rítmico da minha vida pediam mais. Foi nesse dia que decidi gastar energias e começar a fazer jogging. Foi revigorante. Gastar energia, contida há anos, desejosa para sair. 

A convite da Kristen acompanhei-a a inauguração de uma exposição de arte. Algo novo a adicionar a minha lista. A exposição era de um fotógrafo relativamente novo na cena artística, pelo menos foi o que a Kristen me disse. A exposição ilustrava um gênero de pesquisa, que segundo o próprio autor "o sexo é a parte essencial de um relacionamento, destinado não só a unir dois corpos mas essencialmente duas almas." 
As três salas da galeria estavam repletas de fotografias artísticas, onde cerca de 7 casais demonstravam variadas vertentes das suas vidas, o trabalho, os amigos, o dia-a-dia, mas as mais vibrantes eram as fotografias a preto e branco onde os casais se entregavam ao prazer de dois corpos despidos. 
A que até aquele momento mais me marcara foi a de um casal com dois filhos, também um casal. A mãe era uma dona de casa, uma mãe suburbana, morena cerca de não mais do que trinta anos, usava um lindíssimo colar de pérolas -talvez uma oferta do marido, empresário sério mas muito sedutor. Durante o dia, uma mãe que girava em torno de dois filhos, ambos não mais velhos que dez anos, enquanto o pai, um homem de negócios, impecavelmente vestido com um fato azul marinho de óptimo corte a observar a cidade enquanto dominava o mundo dos negócios. Pelo menos era assim que eu o imaginava. Homens de negócios e com um forte carácter, sempre me fascinaram. Imaginava como era a relação dos meus pais antes de tudo acontecer. Até chegar á próxima parede e ver a imagem mais erótica que alguma vez vi. 
Da janela do arranha-céus do escritório do pai empresário via-se o contraste das cores do entardecer. O dia a tornar-se noite. E dois corpos em plena ebulição de prazer. A mulher estava encostada a janela, usava um soutien branco, de renda, apesar da sua cor pura, o corte era sensual, gritava sensualidade. A perna dela estava enrolada as ancas do seu marido. Os corpos deles estavam ligados um ao outro em plena comunhão carnal. As costas do homem eram maravilhosamente decadentes, e os gluteos  desenhados, demonstravam força, ele estava a penetra-la, estavam a ter uma experiência maravilhosa de sexo tardio.  A imagem estava estava repleta de paixão. A boca da mulher estava aberta, ela estava a gemer, ela estava a chegar ao clímax da cena, os lábios do homem estavam a beijar o pescoço dela onde se encontrava o colar de pérolas. O colar era uma marca dele nela, a sua posse. Ele possuía-a. Em todos os sentidos. Naquele momento compreendi a afirmação do autor, aquelas almas estavam unidas. 
Nunca vira algo tão decadente e tão erótico. Aquela imagem provocava algo em mim algo que não sentia a muito tempo. 
- Decadente. Não acha? - a voz masculina, era arranhada. Escondia algo.
Quando me virei fiquei petrificada. Ali estava um homem igualmente decadente. O homem na imagem ficava-lhe vários km atrás. 
E decadente não era a palavra certa para o descrever, mas sim diabólico. A sua altura ultrapassava a minha em quase vinte centímetros, mesmo usando saltos altos. O seu cabelo quase preto estava desalinhado, dando-lhe um ar rebelde, o seu maxilar era forte, desenhado em simetria com o rosto austero, mas não parecia americano. Escondia algo, e aqueles olhos castanho chocolate mostravam-no. 
- Peço desculpa se a assustei, não queria apanha-la desprevenida. - as suas palavras diziam uma coisa mas o seu sorriso de rebelde dizia outra, ele gostou de me apanhar desprevenida. E estava a jogar um jogo. 
- De facto apanhou-me desprevenida. Estava demasiado compenetrada. - não conseguia olhá-lo nos olhos. Sentia-me envergonhada por ter sido apanhada a observar algo tão cru. - Mas não tem que se desculpar. 
- A história deixou-a absorta. - Eu virei-me para voltar a observar a imagem e ele colocou-se ao meu lado. - E forte não acha? 
Ele olhava para a imagem, totalmente perdido na imagem. 
- É marcante. Esta imagem faz com que o fotógrafo se torne um artista. Porque só um artista conseguiria agarrar em algo assim, - eu apontei para a imagem. - e transforma-la em arte. 
- Nisso concordo, plenamente. A leitura que tenho da fotografia e que estão unidos e completamente absorvidos um no outro, na paixão que sentem. E nada mais. Porque momentos assim são finitos. - Ele agora olhava para mim, nos olhos. Não conseguia deixar de olhar para aqueles olhos. Ele viu o mesmo que eu, e conseguiu traduzir para palavras o que eu apenas guardava na minha mente. Os seus olhos castanhos estavam cheios de calor. Mesmo sem qualquer toque a tensão estava palpável. Eu sentia as minhas entranhas, o meu corpo a sentir aquela ligação. 
Tinha de sair dali. Naquele momento. Ele estava a estender a mão para me tocar. 
- Tenho de ir. Já esto atrasada peço desculpas. 
- Espere não me disse o seu nome. - ele via-me a afastar. Ele percebia o que estava a fazer. 
- Nem você o seu. - eu tentava sorrir. - Adeus. 
Ele viu-me a afastar. Mas também não foi atrás de mim. Se ele o fizesse estava tudo perdido. 
Quando já estava a dois metros dele ouvi a sua voz. E mesmo a essa distância produzia um efeito em mim descontrolado. - O meu nome é Seth. - Parei e olhei para ele, e não consegui conter o meu sorriso. Mas não lhe diria o meu nome. E por isso virei costas e sai dali. 

sábado, 23 de novembro de 2013

2. Nua

A monotonia chegou com a partida da Allegra para o colégio. Durante um mês não a irei ver, mas será por uma boa causa, é para a educação dela, depois deste mês ficaremos apenas as duas. A aproveitar o tempo que temos. 

A minha mãe iria gostar e conhecer a pessoa que ela se está a tornar. Uma miúda inteligente, perpicaz, responsável e com um coração gigante. 
Mas por vezes penso que esta vida não é a que quereria lhe dar. Poderia fazer muito mais por ela. Ela está a crescer sozinha, naquele colégio, a tornar-se uma jovem senhora. E sinto que posso perder isso.

O tempo passava a correr na primeira semana. Todas as minhas acções diárias são metódicas e roboticas. Concentradas ao último minuto. Acordo sempre às sete da manhã, depois de me levantar passo pela cozinha e coloco a máquina de café a aquecer, passo pela sala e ligo o computador, e vou tomar banho. Passados dez minutos, já de banho tomado e vestida, passo uma olhada pela minha conta de e-mail enquanto bebo o meu café puro. Muitos dos trabalhos de freelancer que recebo são me enviados logo de manhã, e tinha de estar constantemente actualizada, ler o briefing e me informar do deadline. Depois de todas as minhas tarefas realizadas ia para a estação para ir para a loja. O dia aí passava a correr, quando me apercebia já tinham passado oito horas de trabalho e já ia para casa onde comia uma refeição ligeira e trabalhava. Está era a minha rotina diária. 

Ao reflectir sobre toda a minha rotina chego à conclusão que levo uma vida ridícula e aleanada. Mas acima de tudo solitária. Vivo num apartamento demasiado grande para uma pessoa só. Toda a minha vida roda á volta da minha irmã, mas sem qualquer arrependimento, porque estamos as duas sozinhas no mundo. Sei que na minha idade deveria estar a descobrir o mundo que me rodeia, namorar, viajar, fazer amigos novos. A pessoa mais próxima que tenho é a minha melhor amiga, Kristen, e a Sr.  Lesley, a gerente da loja onde trabalho. Com o passar do tempo perdi o contacto com os meus amigos da minha cidade natal no Texas, ainda nós comunicamos regularmente, mas a distância fazia com que a relação se tornasse mais impessoal. 

Quando tens alguém que depende de ti, acabas por te perder um pouco pelo caminho. Perdes quem és, ou o que queres para ti. E a pergunta é, "quem sou eu?". 
Eu não sei quem sou, não sei o que quero, não sei agora nem saberei amanhã. 
A solidão apodera-se de mim nos dias em que me pergunto a mim mesma quem sou. Não posso depender de ninguém para responder a essa pergunta, a não ser eu mesma. Para descobri-lo pode demorar um pouco, o timming e a descoberta disso mesmo demorará, mas tem que ser feita para que eu seja feliz. 
Não mostro quem sou a ninguém, a não ser à pessoa de quem me sinto mais ligada, sem ser a minha irmã, que é a Kristen, e se tento mostrar a outros faço-o com limitações, e com arestas bem limadas. Porque mostrar-me, dar-me a conhecer é duro. 
Nestes anos aprendi a tomar conta de mim, e a defender-me das adversidades. Construí uma barreira defensiva à minha volta, e deixar alguém entrar para dentro dessa mesma barreira, sem ser as pessoas que já se encontram nela, é impensável. 
Não confio nas pessoas, ou no destino. O destino maltratou-me, o destino tirou-me no espaço de um ano duas pessoas muito queridas. 
E a dor de ficar sem elas fez-me mudar, fez-me crescer e e tornar-me quem sou hoje. Um vazio enorme. Que é muito difícil preencher. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

1. A de Aleggra


Dá para imaginar que depois de seis anos a viver em Nova Iorque me habituasse a esta agitação. Mas não consegui.

Depois de chegar a Nova Iorque eu e a Allegra fomos viver com a Kristen. Ela foi o nosso maior apoio na cidade e o único. Ela veio para aqui viver desde que acabamos o secundário, entrou para a NYU para licenciar-se em jornalismo. Sempre foi uma rapariga muito ambiciosa e audaz. Duas qualidades bem necessárias para a carreira. É desnecessário dizer que conseguiu acabar o curso com louvor, e que conseguiu uma óptima colocação num dos mais importantes jornais periódicos da cidade.

Vivemos com ela dois anos, e foram espantosos. A Kristen decidiu que depois de namorar por quase dois anos com o Jonathan era a altura de viverem juntos. E graças a ela conseguimos manter a mesma casa e por um preço mais reduzido.

Manter uma casa e uma criança na cidade era dispendioso, mas o senhorio ao sentir-se complacente com a nossa situação decidiu baixar a renda para que pudéssemos ficar ali.

As lutas mensais eram regulares, mas não deixava que faltasse nada à Allegra. Eu já trabalhava na 5ª Avenida há três anos, notei que tinha jeito para o atendimento o público e era uma boa vendedora. Mas isso não chegava, a Allegra estava agora com nove anos de idade e estava num colégio interno. Custava-me imenso não só monetariamente mas também emocionalmente. Eu amava aquela miúda com todo o meu amor. Vivia para ela. Ter que a colocar naquele colégio era a melhor escolha que eu tinha, garantia uma óptima educação e valores. E tinha sempre os meus fins-de-semana para estar com ela.

O trabalho na loja era extenuante, mas mesmo assim tinha que fazer outros trabalhos para fora. Como tinha um grande à vontade com o espanhol e alemão, tornei-me tradutora freelancer, traduzia apenas artigos e livros. Não era muito mas já era uma grande ajuda.

Não tinha tempo para encontros ou namorados, já os tive, mas a Allegra era a minha principal preocupação.

Estive apaixonada, nada digno de nota. Pequenas paixões que acabavam quando percebiam que além de mim teriam que lidar com uma criança mais pequena. Não era muito atractivo para eles.

A Kristen tentava sempre juntar-me com amigos do Jonathan, mas eram demasiado aborrecidos. Rapidamente perdia o o interesse, no momento que começavam a falar dos seus trabalhos aborrecidos como contabilistas ou cartórios. Gostava de homens ambiciosos, que soubessem o que queriam e não que não descansavam enquanto não o tinham. Podia ser demais, mas era o meu desejo, queria um sobrevivente, um lutador. Que compreende-se um pouco a minha luta.

Depois de acabar mais um dos jantares cupido da Kristen no apartamento dela, ela ligou-me. Naquela noite tinha-me apresentado um professor da NYU. Não era um contabilista aborrecido, não era à primeira vista um homem muito atraente. Quando olhava-mos pela primeira vez não notávamos no sorriso envergonhado mas charmoso, ou nos olhos castanhos claros, com tanta profundidade. Era interessante, como ser humano. Mas faltava algo.

- Então Lizzie, este era aborrecido? - O tom de Kristen era gozão. Ela sempre achou que eu desejava o homem perfeito que não existia. - Este em comparação com os outros espécimes, como tu os chamas, é de longe o menos aborrecido.

- É sim, sem dúvida. Mas sei lá Kris faltava algo.

- Desejas o impossível. E se nunca o encontrares? Vais ficar sozinha para o resto da tua vida? - Achava que era demasiado triste ainda estar sozinha com esta idade e com uma criança entregue a mim.

- Não, não acho que vá ficar sozinha para o resto da minha vida. Quem sabe encontrarei alguém.

- Espero bem que sim. Não quero que fiques sozinha. - O silencio era incomodativo. Nenhuma de nós sabia mais o que dizer, porque esta conversa já se tornava repetitiva. - Lizzie tenho de desligar o Jonathan está a precisar de ajuda na cozinha. Falamos amanhã, sim?

- Claro que sim, também tenho que acabar de traduzir um artigo. Não te preocupes. - Eu já tinha  acabado de traduzi-lo. Apenas queria acabar com aquela conversa desconfortável.

- Trabalhas demais. Adeus. - E ela desligou.


A semana passou com muito trabalho, muitas vendas e muitas shoppaholics a quererem todas as peças da nova colecção ilimitada. Mas a parte boa é que ia ter tempo com a minha pequena princesa.
Graças a sociabilidade excessiva de Allegra criou um grupo de amigas na escola muito bom, assim não se sentia tão sozinha. Uma das colegas dela era de Nova Iorque e os pais dela a traziam todos os fins-de-semana. Já tinha tudo programado para aquele fim-de-semana, o bolo favorito dela, a receita de bolo de chocolate da minha mãe, uma grande panóplia de filmes para vermos no sofá, e o nosso pijama a condizer.  

A Allegra chegou do colégio na sexta-feira ao final da tarde. Quando a abracei senti-me em casa. Era reconfortante estar com ela, abraça-la e saber que estava segura.

Passamos o fim-de-semana a ver filmes. O frio tinha começado a chegar a cidade, e preferimos ficar em casa de pijama a ver filmes e a comer bolo de chocolate, aninhadas no sofá numa manta.

- Mana posso te fazer uma pergunta? - Cada vez que ela olhava para mim com aqueles olhos castanhos, arrepiava-me. Tinha receio das perguntas que ela poderia fazer.

- Diz querida. - Tinha cada vez mais receio. Havia coisas que ela não sabia. E ainda não estava preparada para saber.

- Porquê que não tens um namorado? - Ela parecia envergonhada. Escondia alguma coisa.

- Porque ainda não encontrei uma pessoa a quem chamar namorado. - Não podia deixar de me rir, porque sentia um alivio enorme por não ter que lhe explicar tudo. - Mas há mais alguma coisa nessa cabecinha.

Ela estava indecisa, se dizia ou não. - Sabes a minha amiga Rose? - Eu confirmei com a cabeça, para que ela continuasse. - Ela tem duas mães. Tu também gostas de senhoras?

Nunca ri tanto na minha vida, com alguma pergunta. E ela estava a espera da minha resposta. Impaciente.

- Não Allegra, não gosto de senhoras. Embora não tenha problema nenhum gostar-se de senhoras. Ou de senhores gostarem de outros senhores.O amor não escolhe géneros. Basta gostar.

Para mim era importante mostrar-lhe que havia liberdade. Liberdade de amar e de expressar. Era importante para mim que ela aprendesse as mesmas coisas que a minha mãe me ensinara. Porque assim sentia que o trabalho que fiz, foi bem feito. A mulher que sou hoje é porque tive a melhor mãe do mundo. A mãe que tinha tanto amor para dar, sem querer nada em troca.

Eu não conseguia deixar de pensar nela todos os dias. Era um espírito que estava sempre presente. Para mim e para a minha irmã.

E era isso que queria que ficasse sempre presente na vida dela, que embora não a tivesse conhecido, sabia que foi muito amada e esperada por ela. A Allegra iria sempre saber disso.






segunda-feira, 9 de setembro de 2013

E tudo começa com um fim

   Quando há pessoas mais importantes do que tu mesma na tua vida, fazes de tudo para lhes dares tudo o que é humanamente possível e impossível. E para isso percorres caminhos obscuros.

   Apesar de ainda me encontrar na casa dos vinte anos de idade já passei por algumas adversidades. Não, não tive uma mãe abusadora ou um pai alcoólico. Mas passei por coisas que jamais imaginaria ter que passar.

   A minha família sempre me conseguiu dar tudo o que necessitei, uma boa casa, estabilidade monetária, uma família unida, uma educação de excelência e todas a bases de uma família feliz. Mas tudo isso mudou há  seis anos atrás, quando perdi a base mais importante da minha família. A minha mãe.

   Numa tarde ensolarada, num churrasco de família, uma tradição já muito antiga da nossa família onde memórias espantosas eram criadas, estavamos todos à volta da mesa, a minha mãe passeava à volta dela, com um prato de sopa para dar à minha irmã, e caiu a queixar-se do peito. Ficou inconsciente e nunca mais acordou.

    No final daquele dia, descobrimos que a minha mãe sofrera de um ataque cardíaco fulminante. Era uma pessoa saudável, ninguém podia antever. Eu considerava a minha mãe a minha melhor amiga, contávamos tudo uma à outra, e saber que a perdemos assim sem um aviso foi assustador.

   A minha irmã tinha apenas três anos, a pequena Allegra mal conseguiu conhecer a mãe, mas eu sabia que a minha mãe a amava com todo o seu coração. Tal como eu a irei amar.

   O meu pai morrera naquele dia com ela, pelo menos o seu espirito e o seu coração ficaram enterrados com ela naquele cemitério.

   Eu tinha que ser forte por todos nós. E pela memória da minha mãe.

* * * 
   Não foi preciso muito tempo para a vida como a conhecia acabar de vez. O meu pai não conseguiu superar a morte da minha mãe. E a cada dia se desligava cada vez mais do mundo. De mim e da minha irmã, do resto da família. A única coisa que ainda o mantinha ligado à Terra era o seu trabalho, criou uma empresa de gestão de investimentos, muito importante e bem cotada. Envolveu-se no trabalho de corpo e mente. 
   Eu voltei para casa depois da morte da minha mãe, para ajudar o meu pai com a minha irmã, não a queria ver ser criada por uma ama, não era o que a minha mãe queria e sem dúvida alguma que isso não iria acontecer. Para isso congelei a minha matrícula na faculdade de letras, onde me encontrava a tirar o curso de Línguas, Literaturas e Culturas. Era naquela casa onde eu deveria estar.
   Todas as noites a minha irmã me perguntava pelo meu pai. Ele nunca estava em casa à hora de a deitar. Ela ficava triste. Não é que o meu pai não a amasse, mas era doloroso para ele estar com ela. Ela tinha os olhos castanhos profundos da minha mãe e o seu cabelo castanho com tom caramelizado. Depois de a deitar eu voltava par o meu quarto para estudar, e ficava sempre até tarde, queria ao máximo manter-me a par com a matéria que estava a perder, e ouvia os passos do meu pai e os passos paravam no quarto ao lado do meu, o da minha irmã. Uma certa noite eu passei pelo quarto dela e lá estava ele, a ajeitar a roupa da cama da minha irmã e depois sentou-se na cadeira onde a minha mãe embalava a minha irmã, e onde segundo ela me embalou também quando era um bebé.
  Ele amava-nos, mas não conseguia mostrar-nos esse amor, porque o amor da vida dele morreu e não se conseguiu despedir dele.
   O desapego pelo mundo continuou mais dois anos assim, mas já nem nos negócios se conseguia concentrar, e isso o levou á ruína. Os investidores começaram a larga-lo, um a um, e as coisas não ficaram fáceis. Ele tentou ao máximo, mas não conseguiu. Envolveu-se em investimentos de alto risco que não vingaram. Mas não ficou por aí,  com o seu desapego até para os negócios, dois associados roubaram fundos de investimentos e quando as autoridades descobriram foi indiciado culpado e condenado a seis anos de prisão.
Eu não podia deixar a minha irmã a viver com esse tipo de influências ao pé dela, e crescer com esse tipo de memórias constantes. Ficamos as duas órfãs, de pai e mãe. E tínhamos que fugir daquela vida, daquelas memórias.

Tínhamos que desparecer da nossa cidade natal, aquela já não era a nossa casa. Tudo o que tínhamos foi perdido, num espaço de um ano. Tínhamos que começar de novo.

A minha melhor amiga, tinha-se mudado para Nova Iorque, era a única pessoa em quem confiava. Sabendo da minha situação e da minha irmã disse que podíamos ficar com ela até que as coisas se resolvessem. Até que a nossa vida estabilizasse.

Eu não queria mais olhar para trás. Queria partir, e aquele era o momento.